segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A VOLTA DA DEUSA-MÃE






Em nome da Mãe: o arquétipo da Deusa e sua manifestação nos dias atuais.

Rosalira OLIVEIRA



“Pois a Grande Deusa, cuja fronte é coroada com as Torres do Impossível,
move-se através das gerações de um crepúsculo ao outro e não há fim para
o seu longo viajar de revelação a revelação”.
John Cowper Powys







RESUMO:



O artigo aborda várias facetas do arquétipo da Grande Mãe, desde as teorias
arqueológicas acerca da sua adoração em tempo pré-históricos até o seu
retorno no momento atual. Este retorno é aqui interpretado como parte da
busca por outros modos de relacionamento entre a humanidade e a
natureza.
Palavras chaves: Grande Mãe, Religião, Arqueologia, Mitologia, Ecologia

Introdução: o retorno do divino feminino:

O fim do século XX assistiu a um acontecimento inesperado: o renascimento de uma religião considerada
morta há tanto tempo que a humanidade quase se esqueceu que ela um dia
existira. Essa religião é a adoração de uma Grande Deusa, vista,
simultaneamente, como Senhora da Vida, da Morte e da Regeneração.

O culto do divino feminino é um dos mais antigos que se tem notícia. O
primeiro elemento cultuado pelo homem foi a Terra. E a Terra, dizem os
mitos, foi gerada por ela mesma. A vida surgia da sua carne rasgada e
jorrava das suas profundezas. Era ela que produzia os frutos, os animais
e o próprio homem. Ela era a mãe de todas as coisas vivas e também a
responsável pela morte. Afinal, se a vida era percebida como um “ab
uterum
”, um emergir do ventre da Terra, a morte representava uma
volta, um regresso “ad uterum”, para que um novo nascimento
pudesse acontecer. Assim ocorria com a semente, assim também com o
homem. Os ciclos de morte e renascimento; criação e destruição;
observados na natureza, eram sentidos como igualmente válidos para a
trajetória do homem no mundo. Para a humanidade do início dos tempos,
não havia separação entre o mundo humano e o mundo natural e todos
compartilhavam o mesmo destino como filhos da Terra. É exatamente em
respeito a esse vínculo que a arqueóloga Marija Gimbutas, considera
importante esclarecer que “a Deusa era a
Mãe mais-do-que-humana. Se for usado o termo Grande Mãe, deve ser
entendido como a Grande Mãe Universal cujos poderes se difundem por toda
a natureza, por toda a vida humana, por todo o mundo animal, por toda a
vegetação”. (1998: 54)

Essa Deusa, também conhecida como a “Senhora dos dez mil nomes”, foi adorada por vários povos antigos: Na
Anatólia e na Creta minóica era chamada de Cibele; No Egito era Nut; na
África seu nome era Nana Buluka e em Canaã era conhecida como Astherah
ou Ishtar. Ainda que fosse evocada por diferentes nomes, em todos os
lugares representava o princípio criador e simbolizava a unidade
essencial de toda a vida na Terra. Seu culto foi destruído e,
paulatinamente, substituído. Primeiro pelos deuses guerreiros e depois
pelo monopólio de um Deus único.

Esse processo de mudança de mentalidade encontra-se refletido nos mitos. Um bom exemplo é a formação do panteão grego. Bem
antes dos mitos clássicos tomarem forma e serem escritos por Homero e
Hesíodo – no século VII a.C. – já havia uma rica tradição oral de
formação de mitos. Muito provavelmente, estes mitos refletiam o
resultado do processo de conquista da região da Anatólia pelos
indo-europeus. Neles, são evidentes:


Os vestígios dessa tradição primitiva nos mitos posteriores, os quais
refletem o amálgama cultural de três ondas de invasores bárbaros: os
iônios, os acádicos e, finalmente, os dórios, os quais penetraram na
Grécia de 2.500 até 1.000 a.C. Todos levando consigo uma ordem social
patriarcal e o respectivo deus dos trovões, Zeus. (HIGWHATER J.
1992:39).

Desse modo, a Grande Mãe foi primeiro, associada a um Deus masculino – como filha, mãe ou consorte – e,
finalmente, banida da psique humana pela predominância do Deus único
apregoado pelas religiões monoteístas. Esse processo, ocorrido em ritmo e
intensidade diferentes para cada povo, se iniciou há cerca de 5.000
anos atrás e moldou a forma de ver a realidade que é ainda dominante nos
nossos dias. O rosto da Deusa, porém, permaneceu oculto sobre o véu da
história e reaparece agora. Atualmente, através do trabalho de
arqueólogos, mitólogos, artistas, cientistas, historiadores da arte,
antropólogos e filósofos, a evidência fragmentada da religião da Deusa
está tomando forma e Ela está voltando. Com isso ressurgem também
múltiplas formas de culto ao divino feminino.

Qual a razão deste interesse? Por que falamos em retorno da Deusa? O que significa esse retorno? O que teria a
Grande Deusa cultuada no prelúdio da nossa história a dizer aos homens e
mulheres do mundo atual? Penso que uma das explicações reside no fato
de que as recentes descobertas a respeito da Deusa e Suas culturas
colocam em questão os pressupostos básicos daquilo que já foi descrito
como:


Um sistema de cinco mil anos, no qual o mundo foi concebido como uma pirâmide, regido do alto por um Deus masculino,
com criaturas feitas à sua imagem (homens), por sua vez divina e
naturalmente ordenados para governar mulheres, crianças e o resto da
natureza. (EISLER, R. 1998:12).

Neste sistema, que predomina até os dias atuais, o mundo é concebido como uma espécie de cadeia de comando na
qual o Deus-pai delega ao homem a tarefa de governar as suas outras
criaturas, tidas como inferiores. Um bom exemplo está na “doutrina das
causas finais” que, numa de suas versões, afirma que o mundo foi
projetado por Deus para um determinado fim: o bem-estar da humanidade.
Sendo assim, caberia ao homem o papel de “agradecer
essa dádiva e, em troca, aceitar exercer o controle do planeta, uma
aceitação que foi recomendada com instância pelos judeus já em tempos
antigos”
(EHRENFELD. D. 1992:05). Esta doutrina se fundamenta em
três idéias centrais, que orientam, até hoje a nossa relação com o mundo
não humano: a que nos autoriza a usar uma natureza criada para nos
servir; a que nos permite exercer amplamente o nosso “controle” e aquela
que afirma a superioridade humana em relação à natureza.

De modo radicalmente diferente, as culturas da Deusa concebiam o mundo natural e
o mundo humano como interligados na grande teia da vida, nada menos que
o Seu próprio corpo. A crítica lançada pela Deusa a esse sistema
reverbera e atinge todos os setores da nossa “civilização”: relações de
gênero, cosmologia, relação com o corpo, com o sexo, com a natureza,
conceito de ciência, etc. No seu simbolismo, homens e mulheres têm
encontrado inspiração para propor um mundo diferente, um mundo no qual a
posse e o domínio não sejam as únicas formas de relacionamento nem
entre os seres humanos, nem entre nós e aqueles com quem partilhamos a
vida na Terra. Mas, antes de aprofundarmos essa discussão exploremos
ainda que brevemente a fragmentada história da Grande Deusa e das Suas
culturas.

A Deusa e Suas culturas:


Os estudiosos costumam situar as origens do culto da Deusa no período Paleolítico
(por volta de 100.000 a 10.000 a.C.), também chamado “período dos
caçadores/coletores”. As estátuas da Deusa representada como uma mulher
com seios e nádegas pronunciadas – as chamadas “Vênus Paleolíticas” –
estão entre as primeiras representações do divino que a humanidade
elaborou. Algumas dessas imagens datam de 30.000 anos atrás.
Tradicionalmente vistas como ligadas a algum culto antigo de
fertilidade, elas foram reinterpretadas por Marija Gimbutas como
representações dos poderes do mundo geradores da vida, precursoras muito
antigas da Grande-Mãe que ainda será reverenciada em épocas históricas.
No seu entendimento, as imagens das “Vênus”, com suas características
femininas – seios, ventre, vulva, quadris – deliberadamente exageradas,
constituem:



Uma representação religiosa - a reificação da Geradora da Vida. Aquelas
partes do corpo que, aos nossos olhos, parecem exageradas ou grotescas
são as suas partes mais importantes, mágicas e sagradas; a fonte visível
e produtiva da continuidade da vida em seus diversos aspectos e
funções. (1998: 54).


Mas não é só no início da aventura humana que a Deusa se faz presente. A Grande Mãe do Paleolítico atravessa toda
a chamada “revolução agrícola” para firmar, no período seguinte, sua
adoração. O Neolítico é considerado um momento de grande prestígio do
feminino, fato atestado pelo impressionante número de esculturas,
gravuras e outras imagens representando imponentes personagens
femininos, cujo poder e natureza divina se afirmam nitidamente. É ainda
Marija Gimbutas quem percebe nesta continuidade da representação
feminina, “uma única linha de
desenvolvimento de um sistema religioso, desde o Paleolítico Superior,
passando pelo Neolítico, pelo Calcolítico e pela Idade do Cobre baseado
em uma organização matrifocal”. (IDEM: 67).



Realmente, adoração da Deusa e matrifocalidade parecem caminhar juntas.
Caracterizado pelo surgimento da agricultura, o período Neolítico marca
um momento de extrema valorização dos aspectos positivos da Grande-Deusa
como deusa da fecundidade, criadora da vida e, pensam historiadores e
arqueólogos, também da mulher vista como a criadora no âmbito do humano.
Afinal, o culto da Deusa-Mãe não poderia “deixar
de ter conseqüências sobre as relações do homem e da mulher. Esta era o
sucedâneo humano daquela e o homem do Neolítico adorava um deus com
formas femininas”. (BADINTER, E. 1986:67)
Mesmo levando-se em
consideração o fato de que a concepção da sacralidade da maternidade e
da mulher já se fazia presente desde o período anterior, pode-se inferir
que a descoberta da agricultura reforçou consideravelmente essa
associação vinculando simbolicamente a fertilidade da terra à
fecundidade feminina. Na percepção dos nossos ancestrais, as mulheres
se tornaram, então, as responsáveis pela abundância das colheitas, uma vez
que conheciam e compartilhavam do mistério da Criação. Esse modo de
pensar constitui uma expressão daquilo que Mircea Eliade denominou “consciência agrícola”, uma concepção
de mundo que tem na percepção de uma solidariedade mística entre a
fertilidade da terra e a fecundidade da mulher uma das suas intuições
fundamentais. Nesta concepção, o próprio trabalho agrícola é um rito, já
que além de ser um ato realizado sobre o corpo da Terra-Mãe, implica na
integração do lavrador com os Seus ciclos. Ainda segundo Eliade, a
consciência agrícola enseja uma “religião
cósmica”,
fortemente ancorada no vínculo mágico que une
agricultura e procriação, na qual os ritos destinados a assegurar a
fecundidade do solo são freqüentemente realizados pelas mulheres. São
exemplos de tais ritos: a nudez, as orgias, as gotas de leite materno
derramadas no campo, a semeadura ritual, etc. Em alguns casos, apenas as
mulheres grávidas podem participar, em outros apenas as virgens e em
outros, ainda, apenas as casadas. Todos eles reafirmam a crença nesse
vínculo cósmico, nessa solidariedade profunda em virtude da qual:


A fecundidade da mulher influencia a fertilidade dos campos e a opulência da vegetação, por sua vez, ajuda a
mulher a conceber. Os mortos colaboram com uma e com a outra, esperando
dessas duas fontes de fertilidade, a energia e a substância que os
reintegrarão ao fluxo vital. (IDEM: 70).


A solidariedade dos mortos – enterrados como grãos – com a fertilidade e a agricultura reforça a onipotência da
Terra-Mãe e, com ela, o prestígio das mulheres. A própria atividade
agrícola é uma prática regenerativa. Através dela a semente enterrada
sob a Terra volta à vida. É por conta dessa afinidade, e da natureza
ctônica de ambos, que os cultos da fertilidade vinculam-se, de modo
profundo, aos cultos mortuários. Neste complexo simbólico, tudo que toca
à vida e, portanto, à riqueza, diz respeito à mulher. Fonte da
fertilidade ela é também a curadora que conhece as ervas e a protetora
que guarda o sono dos mortos até que estejam prontos para retornarem.


Ainda que não restem grandes dúvidas sobre a organização social pacífica e sobre o prestígio
desfrutado pela mulher neste período – seja como responsável pela
fertilidade do grupo, pelas curas medicinais ou pelos ritos funerários –
muito se discute a respeito do seu real poder político. Alguns
estudiosos julgam que o papel de destaque ocupado pela mulher na vida
religiosa não implica numa posição semelhante na esfera civil. Para
eles, a expressão “ela reina, mas não
governa”
constitui uma síntese adequada do status da mulher nas
sociedades do Neolítico. Já outros se concentram na preponderância da
Deusa-Mãe sobre os demais Deuses e na reverência ao feminino na criação
da vida e chegam a utilizar o termo “matriarcado”
para caracterizar estas sociedades. Esta é uma discussão bastante
antiga. A hipótese de um “matriarcado
primitivo”,
que antecederia as sociedades históricas patriarcais,
foi exposta no século XIX por Johann Jakob Bachofen. Sua teoria que
inicialmente teve grande aceitação caiu em descrédito já nos primórdios
do século XX. A principal crítica feita a Bachofen dizia respeito à
falta de comprovação histórica das conclusões por ele apresentadas.
Outro fato que deporia conta à hipótese do matriarcado primitivo era a
total inexistência de sociedades históricas – mesmo aquelas consideradas
mais primitivas – nas quais vigorasse este tipo de modelo. No centro
dessa discussão, parece haver uma espécie de confusão semântica:
enquanto o termo “matriarcado” diz
respeito a um “governo feito pelas mães”
,os termos “matrifocal” e “matricêntrico” referem-se à idéia de
uma sociedade centralizada na mulher, mas não obrigatoriamente governada
pela mulher. Já o termo “patriarcado”
significa literalmente “governo feito
pelos pais”
.

Mesmo a intelectualidade feminista contemporânea, critica a teoria do “matriarcado original”. Como muitos
estudiosos fazem questão de ressaltar, a noção de “matriarcado” (assim como o seu oposto)
tem como modelo subjacente, a idéia de uma sociedade estruturada a
partir da dominação de um sexo pelo outro. Desse modo, aquilo que não é
patriarcado, deve, necessariamente, ser matriarcado. Esse raciocínio é,
como explica Riane Eisler, a conseqüência de uma sociedade dominadora
que vê como “naturais” a existência de uma relação hierárquica entre
homens e mulheres. A verdadeira alternativa ao patriarcado – diz ela –
não é o matriarcado, mas sim, “a
alternativa, agora revelada como a direção original da nossa evolução
cultural, a de uma sociedade de parceria: uma maneira de organizar as
relações humanas na qual a diversidade não é equiparada com
inferioridade ou superioridade” (1998: 23).

Os intelectuais ligados ao movimento feminista desenvolveram, portanto, um modelo diferente para a cultura
neolítica: o de uma sociedade matrifocal ou matrística. É este o modelo
que emerge de trabalhos como os realizados por Marija Gimbutas, sobre as
divindades da “velha Europa” e por James Meelart nas ruínas da cidade
de Çatal Hüyuk na atual Turquia, entre outros. Estes autores têm
sugerido que as sociedades do período Neolítico eram realmente culturas
pacíficas e cooperativas, nas quais as mulheres ocupavam posições
sociais importantes como sacerdotisas, artesãs ou chefes de clã
matrilineares, e onde não se encontram registros de grandes
diferenciações de status baseadas no sexo. Enfim, sociedades
matrifocais, nas quais o pensamento e as práticas espirituais giravam em
torno de uma Deusa-Mãe e onde a filiação era definida através da
linhagem materna. Nestas sociedades, a Deusa não era um mito, uma lenda,
ou mesmo um símbolo no sentido moderno do termo, mas uma realidade
cósmica. Uma realidade que, ao reificar a ligação entre todo o mundo
vivo e sacralizar o mistério da criação, tendia a enfatizar valores,
como a cooperação e a convivência pacífica – seja entre os sexos, seja
entre o homem e os demais seres, etc. – em detrimento de outros, como a
dominação e força bruta. Tratava-se, isso parece inegável, de um mundo
matricêntrico muito diferente das sociedades masculinizadas que lhe
sucederam.

Uma virada mítico-histórica

A mudança de valores ocorreu em diferentes momentos. No caso das culturas situadas na região da velha
Europa, o processo teve início por ocasião das primeiras invasões
indo-européias. Esses povos nômades trouxeram consigo uma nova ordem
social dominada pelos homens e por deuses masculinos que se reflete no
panorama mitológico e religioso Até este ponto, “a era da predominância feminina na religião está documentada
como contínua durante uns vinte e cinco mil anos” (GIMBUTAS, M. 1998:
38)
. Mesmo após a maior parte da Europa se tornar
indo-europeizada, no período entre 4.500 e 2.500 a, C., com a
consolidação do domínio dos invasores, os dois sistemas culturais
continuaram mais ou menos fundidos com o sistema matrifocal funcionando
como uma espécie de subcorrente. É o que afirma Junito Brandão em
relação à situação grega. Nela, temos:





De um lado um panteão masculino (patrilinhagem), de outro, um panteão, onde as
deusas superam de longe (matrilinhagem) os deuses e em que uma
divindade matronal, a Terra-Mãe, a Grande Mãe ocupa o primeiríssimo
posto, dispensando a vida em todas as suas modalidades: fertilidade,
fecundidade, eternidade. (BRANDÃO, J. 1991:70).






Exemplos relativos à fusão e a convivência (quase nunca pacífica) entre estes dois sistemas podem ser encontrados
em quase todas as mitologias européias. Em geral tal conflito é
descrito, simbolicamente, como uma guerra, na qual os deuses
recém-chegados enfrentam e dominam os antigos deuses, condenando-os a
regiões obscuras ou admitindo-os de forma subordinada no panteão
principal. Este conhecimento constitui parte da tradição repassada
dentro da religião da Deusa, como comenta este entrevistado, praticante
de uma das religiões da Deusa:








Várias tradições falam de uma guerra. Você vai ter uma guerra nos gregos onde os Deuses tiraram o lugar das Deusas. Nos
nórdicos também. (...) Mas você vê que a mitologia reflete uma fase
histórica, um período da história em que aconteceu essa difusão do
patriarcado que entrou em guerra com as culturas matriarcais e o que a
gente tem até hoje é um reflexo disso. Mas em todas elas, o patriarcado
teve que conviver com o matriarcado e com seus Deuses mais antigos.


Uma outra forma de expressão deste conflito é o combate entre um campeão da ordem – um
deus ou herói solar – contra um monstro, serpente ou dragão – uma
criatura ctônica, filha da Deusa-Terra, ou às vezes a própria Deusa –
cuja derrota marca o fim do mundo matricêntrico e do domínio da Grande
Mãe. São exemplos desse arquétipo: a luta de Apolo com a serpente Píton
entre os gregos; de Javé contra o Leviatã entre os hebreus; de Marduk
contra Tiamat, entre os babilônios, entre outros.






Você tem, por exemplo, na Babilônia a figura de Marduk, que é um herói
civilizador, então já não mais nem uma figura divina. Ele tem que matar
um dragão e da carcaça desse dragão ele cria o universo. Esse dragão se
chama Tiamat que é o nome da Grande Deusa. Então isso mostra uma
subversão muito grande da mitologia da criação. E depois a gente vai ter
um Deus único que já não precisa da Deusa para criar.


Descrita como o dragão primevo, Tiamat é a serpente marinha combatida por seu
neto, Marduk, o qual depois de cortá-la em pedaços, passa a governar o
mundo formado a partir dos pedaços do seu corpo. Observe-se a
ambigüidade da narrativa mítica: por um lado, Marduk, ele próprio um
filho da Deusa primordial. Por outro, ele dá origem a uma nova
modalidade de criação não mais a geração,
associada ao feminino, mas a morte
e o desmembramento, associados ao
poder masculino. Mais interessante ainda é o fato do corpo de Tiamat
conservar o seu poder gerador, sendo apenas a partir dele Marduk pôde
criar o mundo. Este combate repete-se em várias mitologias patriarcais,
com as Deusas-Mães, ou a primeira geração dos seus filhos, sendo
associadas a monstros que os novos deuses precisam derrotar para
estabelecerem uma nova ordem. É o que Joseph Campbel denomina “difamação mitológica” e Highwater,
classifica como “nada mais nada menos do
uma conspiração mitológica” (1992:62).
Na avaliação deste último,
o protótipo dessa batalha entre os princípios feminino e masculino,
deusa e deus, desordem e ordem, natureza e cidade reside no famoso
confronto entre Zeus e a serpente Tifon, último filho de Gaia – a Deusa
Terra. Segundo ele, uma condição para interpretar este mito em termos da
atitude dos gregos em relação ao feminino é entender que, para a
mentalidade helênica, Zeus era o inimigo do caos, o herói que defende os
deuses contra a revolta selvagem identificada com as mulheres. Com sua
vitória sobre Tifon ele assegurou o predomínio dos deuses patriarcais do
Olimpo sobre a prole da Grande Deusa-Mãe, os primitivos Titãs. Desse
modo, para Highwater, esse combate simboliza a “a ritualização de um conceito grego essencial: as mulheres
personificam a natureza bruta – e a natureza representa o caos e a
desordem” (IDEM: 66).


Entretanto, mesmo a vitória sobre as criações monstruosas da Grande Mãe revela-se insuficiente para selar a
paz, seja no Olimpo seja na psique do homem grego. O tema da revolta das
mulheres é recorrente nesta mitologia. Seja na representação das
deusas, onde aparece, por exemplo, nas atitudes vingativas de Hera – uma
Grande Mãe reduzida ao papel de consorte do Deus; na recusa de Deméter –
a Senhora dos Grãos - de permitir que a Terra produza até que sua filha
lhe seja devolvida ou, ainda, no total desrespeito de Afrodite – a
Deusa asiática da fertilidade – às convenções do casamento patriarcal.
Ele aparece também nas atitudes das mulheres mortais que lutam conta os
ditames de um mundo masculino. É o caso, entre outros, das Amazonas,
guerreiras dedicadas à virgem caçadora Ártemis; de Atalanta que desafia
os homens no seu próprio campo de ação e só é vencida graças a um
estratagema e de Medéia que escolhe como alvo da sua vingança aquilo que
é mais importante para o homem dentro do esquema patriarcal – sua
descendência. Estes e vários outros exemplos são expressões de uma
tensão permanente que atravessa toda a produção mítico-poética
helenística. E que, por tabela, embala ainda hoje os sonhos e pesadelos
do homem ocidental.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.